O PASSAMENTO DE SATURNIN'AUGUSTO

Texto de J. Alves postado em 04/02/2020

PRÓLOGO

 

 

Ao despertar aquela manhã, percebeu que tinha dormido mais que de costume. A claridade do sol já tinha entrado e alumiado o retrato dos netos na parede. Na foto, Serafim e Rafaela abraçavam o Avô sorrindo. A foto havias sido tirada durante um passeio no Parque do Ipiranga, bem no marco zero da Velha Estrada que Desce pro Mar. Saturnin’Augusto a mandara ampliar e colocar numa moldura grande na parede de seu quarto.

Para o Avô, Serafim era um menino muito especial, porque foi o primeiro neto e havia uma vinculação afetiva muito forte entre os dois.  Me vejo nesse menino! Os olhos grandes dele é como uma trilha que se mistura e se confunde com a Velha Estrada que desce para o Mar. 

Rafaela não era menos amada e foi uma bênção com a perda de Sauli, que morrera prematuramente. Os dois netos não conheceram a avó Maria, que falecera, deixando um grande vazio no peito do marido. 

A vida é cheia de compensações, a preencher nossos vazios. Tira daqui é repõe dali. Para Saturnin'Augusto a reposição vem nos netos.  Ele gostava muito deles a ponto de fazer tudo para agradá-los. Primeiro ele gostava de contar-lhes histórias que tirava de um livro antigo, grosso, capa de couro e de folhas ja amarelecidas. Muitos personagens do bem e do mal moravam ali e tinham vida própria e caminhavam livremente na fantasias do Avô. Ele amava de paixão aquele alfarrábio, enorme como um incunábulo medieval, o qual ocupava um lugar de destaque na estante. Todos os dias ele arejava suas páginas. Outra diversão era passear no Bosque do Ipiranga e tomar sorvetes. 

Acordei tarde!…Naquele dia, Saturnin’Augusto pôs o livro de lado e saiu à sacada, para espairecer. De lá, viu os bem-te-vis pousadas nos fios da rede elétrica do poste que ficava bem na frente de seu modesto sobradinho, de janelas de madeira arqueadas tipo colonial, no Ipiranga, capital paulista. Os pássaros olhavam para ele, pulavam de um fio a outro parecendo cantar rap. Esses pássaros, são mesmo estranhos! Cantam, se contorcem e olham para mim como se quisessem dizer alguma coisa!… Será impressão minha?!

Enquanto mirava os pássaros, alongou os braços e esticou as pernas (alongar os músculos e respirar fundo era hábito dele). Depois comprimiu os lábios, repuxou os olhos e balançou a cabeça em tom afirmativo e tomou uma decisão inesperada. Quer saber de uma coisa? Hoje vou dar um passeio na Avenida Paulista! - pensou alto, enquanto olhava os bem-te-vis cantando e se contorcendo nos fios elétricos.  Pássaros estranhos aqueles!… Nem parecem criaturas desse mundo!… Por onde vou, eles estão ali, como me observando!” 

Na sala havia uma velha estante com algumas revistas e alguns livros. O livro antigo ocupava lugar de destaque entre os demais. O sonho de Saturnin'Augusto era um dia ter uma biblioteca, com prateleiras de madeiras envernizadas e grandes lustres de cristais pendentes sobre uma mesa redonda de mogno, com cadeiras entalhadas e assentos estofados, e, no canto, uma poltrona bem confortável sob a luz de um abajur em que pudesse ler e folhear também as revistas de astronomia e de mitologia, assuntos prediletos deles. 

Lustres de cristais! - imaginou.

Viu-se então sentado em sua confortável poltrona folheando uma revista e imaginando o universo como uma imensa arquitetura de cristal, algo que lembrava uma matrioska feita de infinitos e frágeis cristais rutilantes, formando as constelações. Entre estas, Orion, a mais fantástica! E lá na extremidade da Via-Láctea, infinitamente pequena,  a Terra, a morada dos homens, uma imensa água marinha frágil e flutuante no espaço... 

Uma biblioteca! - pensou.

A ideia da biblioteca, porém, não saía de seu pensamento. Um recanto em que pudesse ficar à vontade, receber, conversar e ficar em companhia de seus escritores e contadores de histórias. Como seria divertido embarcar no mundo da fantasia com eles!... Ainda sentado na poltrona imaginária, voltou o olhar para a pele manchada de seus braços e mãos: Como o tempo passa rápido! Envelheci sem perceber. Estou voltando a ser criança. Apegando ao fantástico e engraçado mundo faz-de-contas. E voltava a imaginar: uma biblioteca em casa! Um sonho impossível! A grana é curta! Livros são caros! Comprar um lustre de cristal ou uma mesa redonda de mogno? Um sonho impossível! 

O jeito era se contentar com a velha estante, a mesa e quatro cadeiras, o sofá de couro avermelhado... Tudo simples, mas o suficiente para ele se acomodar e folhear suas revistas e ler e reler o velho livro de capa de couro, que reunia histórias dentro de histórias, muitas delas preexistentes apenas no imaginário dos mais antigos e que aos poucos íam-se perdendo como fósseis soterrados pela argila dos tempos, às espera de uma descoberta geológica. Seu prazer era recontar do seu jeito aquelas histórias aos netos, quando eles o visitavam nas férias.

Almoçou, colocou os óculos retrô vintage de aro e hastes marrom cor de mel de laranja. Vestiu a melhor calça jeans, pôs uma jaqueta de couro sintético e uns sapatos pretos de sola grossa, separou o dinheiro da condução e guardou os comentos na pochete. Pegou a condução e foi passear na Paulista…

Era um remoto começo de tarde paulistana dos anos 80. Um tempo bicudo, de olhos grandes e tristes, mas esperançosos apesar de tanta violência. Enquanto caminhava pela Avenida pensava: Preciso ficar esperto. Não dar bandeira! Não banque o distraído!  Nas proximidades do Parque Trianon, deteve-se atraído por um majestoso lustre cintilante na vitrine de uma loja de cristais. Na etiqueta do produto estava descrito: "Lustre Matrioska De Cristal Legítimo"

Ficou ali parado admirando a magnífica estrutura de cristal, composta de camadas esféricas,  brotando do teto e se sobrepondo umas sobre as outras,  numa profusão de luzes. Ficaria lindo na minha biblioteca!

Foi neste instante de  magia de brilhos e de cores, e no corre-corre de uma avenida supermovimentada, que um estranho mochileiro o interpelou, com uma mochila estufada às costas. Seus cabelos longos e grisalhos cobria seu rosto. Saturnin’Augusto sentiu-se diminuído em seu tamanho diante daquela figura alta e esguia. “Um Mochileiro das Galáxias?!…” — pensou. Trajava camisa solta, que mais parecia uma túnica. Na estampa, estrelas  formando a figura de um guerreiro celeste. Só pode ser Orion. Que estranho!…  Voltou a si quando o estranho tocou ombros dele, dizendo:

- Muito lindo o lustre!... -. 

Seus olhares se cruzaram e se encontraram no mesmo ponto: o lustre de cristal na vitrine. 

Surpreso, voltou o rosto para o desconhecido, que o encarou, dizendo:

- Saturnin'Augusto?!… Bom dia,  meu senhor!...

Desconfiado e temeroso diante daquela figura inusitada, sentiu-se diminuído e ficou sem reação e o que conseguiu foi apenas dizer:   

- Boa tarde… moço!… Em que posso servi-lo? — Não entendia como aquele sujeito pudesse saber seu nome, ainda mais ali na Paulista. Tentou se lembrar...  De onde conheço esse moço? Não consigo lembrar! Não consigo lembrar!... 

Ainda procurou esquivar-se daquele olhar abissal, mas sentiu que sua intimidade já tinha sido devassada. “Fique esperto, Saturnin’Augusto! Hoje em dia, não dá para confiar em ninguém!…” Pensou em perguntar, à moda dos antigos: “Desculpe seu moço, qual é mesmo a sua graça?”, mas faltou-lhe coragem. Sua língua travou e seus lábios ficaram secos e trêmulos. Seu olhar então buscou refúgio no lustre de cristal, que balançou na vitrine espalhando luzes e fazendo retinir seus cristais, como numa mensagem secreta que ele não conseguia entender.  Voltou o olhar mais uma vez para o rosto e os olhos grandes do estranho, em busca de algum entendimento ou detalhe, ao menos um sinal que o ajudasse desvelar alguma lembrança ou o significado daquelas coisas. 

Antes não tivesse olhado, pois, por um breve instante, tudo se lhe obscurecera. E o que conseguia entrever foi a sobreposição de quatro faces em um mesmo rosto holográfico,  parecendo um imenso vazio cósmico estrelar, um lugar nenhum. E no vazio o tirintar de frágeis e infinitos filetes de cristais se resvalando e colidindo-se uns contra os outros, como asteróides devastadores por sobre a Terra. Pensou estar enlouquecendo e gritou horrorizado sem nada dizer: Meu Deus, socorro! Isso vai despencar por sobre nós e ferir de morte!

Não podia esconder o medo e encantamento. O primeiro inibia sua mente e embotava seus sentimentos, o segundo o arrastava a um delírio diante da profusão de corpos celestes resplandecentes que o cegava com a sua claridade. Naquele estado de embriaguez mental, ele viu que o lustre agigantou-se na vitrine. Sem nada compreender, mas visivelmente transtornado, mais uma vez gritou por socorro. E então o lustre de cristal se transformou em uma a carruagem de fogo, puxada por aves gigantes e o abduziu e se elevou por sobre a Avenida, sobrevoando os prédios e as Torres de Transmissão  mais altas instaladas no alto dos edifícios. De olhos arregalados, ele tudo contemplava distante: o passado, o futuro e o presente... Cada fio de cristal se desprendia de um luminar celeste rumo a Terra e se transfiguravam em figuras de anjos, com asas ornadas de cristais das mais variadas cores. Eles pousavam em uma grande montanha e de lá desciam rápidos às planícies e vales. Quem são eles? De onde vem? O que vão fazer? - Saturnin’Augusto perguntou. 

Uma voz então respondeu: 

São os vigilantes. Seres astutos, engenhosos, encantadores e extremamente sedutores. Travestidos de humanas aparências tomarão conta dos cinco sentidos humanos. Possuirão as filhas dos homens e seus filhos devastarão a Terra”. 

Sem saber a razão, Saturnin'Augusto no desespero buscava discernimento daquelas coisas, mas lhe faltava o perfeito entendimento. Havia muito mistério e enigmas a serem descobertos. Começou a pensar realmente naquilo que importava e lhe dava alegria de viver: os netos. Salvar a sua família. Num gesto espontâneo e familiar, estendeu os braços para protegê-los da multidão de celerados, procurando refúgio num imenso e fluido arco-íris de cristais. Sentiu que flutuava no vazio... Quando voltou a si, se deu conta de que o estranho o amparava pelo braço para não cair. Ficou desconcertado, parecendo aquilo tudo um sonho absurdo, não fosse algumas pessoas preocupadas a sua volta e o estranho dizendo:

— Meu amigo passou mal, mas agora já está bem! Estou com ele e cuido dele! — 

— Obrigado, gentil moço! Me desculpe!... Está tudo bem. Não se preocupem. 

As pessoas foram se dispersando e se perdendo no meio da multidão, ficando apenas os dois ali diante da loja. 

— Creio que tive um sonho acordado... Muito estranho, o que aconteceu. Foi uma visão! - pensou consigo.

-  É bem verdade... - interrompeu o estranho... Depois de um silêncio, continuou: — À medida que a gente envelhece e os cabelos brancos começam a florir em imensas planuras de cristais das lembranças... Quando das rugas começam a fluir antigas e cristalinas mágoas de dores que nunca terminam, as coisas de cima se misturam com as debaixo e as debaixo com as de cima e já não se sabe exatamente o que é realidade do presente ou antigos e premunitórios sonhos a ressurgirem  no presente em invisíveis filetes de cristais... 

Ao ouvir aquelas palavras, Saturnin’Augusto olhou para o estranho e de novo sentiu medo. Era mais que um medo. Era  um temor. Seu sentimento foi o de sair dali, sem olhar para trás. Mirou o velho relógio e disse: 

- Me dá licença seu moço! Tenho que me ir. Já passa das 17 horas...   Não gosto de andar a noite pelas ruas... Preciso retornar a minha casa... Moro no Ipiranga...

— Conheço a Estrada Velha que brota do Parque e desce para o Mar.

— !?… Esse sujeito é estranho mesmo. Preciso dar o fora daqui antes que seja tarde demais…

— Espere um pouco… Deixe eu dizer… Fiquei muito feliz de encontrar você aqui na Avenida. Até parece coisa combinada, não parece?

Saturnin’Augusto ficou paralisado. Queria ir embora logo, mas algo o enredava ao estranho.  Como se lesse os pensamentos mais íntimos dele, a estranha figura mirou com um olhar além do olhar o trânsito carregado na Avenida. Seu olhos miravam  os pedestres, os prédios com suas fachadas e janelas iluminadas... E voltando seu olhar, disse:

— São lindos os seus netos...  Julgo que os tenha…

 Saturnin’Augusto sentiu um arrepio pelo corpo  que subiu das pernas e formigou no seu peito. “Este cara sabe coisas demais sobre minha vida. O que está acontecendo. Preciso dar o fora daqui…”  Assim pensando, respondeu.  

— Sim. São dois netos lindos! Serafim e Rafaela!...  Havia hesitação e desconfiança em sua voz. 

— Não tenha medo. Não sou impostor nem assaltante e nem se preocupe com minha aparência... Sou um miniaturista a vagar pelo mundo… Sou um Mochileiro do Mundo! Estou nessa cidade de passagem. Minha arte é recriar invisíveis mundo em grânulos de cristais...

— Grânulos de cristais?!... Como assim?!

— Logo logo vou mostrar para o senhor… 

— Eu também sou fascinado por cristais... 

Foi quando Saturnin'Augusto reparou que dedos das mãos do estranho trazia uma constelação de anéis ornados de majestosas pedras de cristal. As pedras reluziram e clarearam como se naquele momento absorvessem num único ponto todas as luzes da Paulista e projetassem o clarão diretamente no rosto deles.

O moço da estranha figura abriu então a mochila e retirou de uma caixa a miniatura de uma arca toda feita de cristal. Saturnin’Augusto arregalou os olhos e contorceu os lábios, ao reparar aquilo que parecia  dois minúsculos anjos a servir de guardiães. “A arca  da aliança?!… Como é possível?” Com dedos habilidosos o moço da estranha figura abriu a minúscula arca.  Uma majestosas e reluzente esfera de cristal iluminou o rosto deles. O miniaturista retirou mochila uma lupa e disse:

— Veja, meu caro amigo!  O estranho tomou a esfera e abriu. Saturnin'Augusto não podia acreditar.  A esfera era na realidade um livro holográfico que guardava infinitos livros dentro de livros.  

— O que é isso? 

— Vamos chamar isso de Librioska. Livros dentro de livros! Histórias dentro de histórias!…

- É tão minúsculo... e tão vasto!

O miniaturista foi mostrando livros dentro de livros até que deteve e disse a Saturnin'Augusto :

— Veja!… 

Saturnin’Augusto estatelou os olhos e não conteve  seu espanto, pois o que via diante si através da lupa era algo que jamais havia visto... 

— Uma pulga?!…

— A Pulga!… 

— Não pode ser? — e atônito leu soletrando o que estava escrito no dorso dela:  “Eles são muitos!... Estão em todas as partes!…”

Ainda sem entender o que aquele escrito significava, ao levantar os olhos,  Saturnin’Augusto percebeu que estava sozinho diante da loja. Como se seu tempo houvesse sido congelado. O lustre ainda cintilava na vitrine.  Desconcertado com o que havia vivenciado, ele voltou para sua casa pensando: “  Não pode ser! Eu vi coisas! Foi tão real, tão verdadeiro! Ou será que estou enlouquecendo e vendo coisas? Misteriosa essa Avenida!…” 


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