De longe vejo meu pai

Texto de J. Alves postado em 11/05/2022
 


De longe, vejo meu pai,  

imerso em sua solidão,   

pela idade, já perdendo o prumo;  

de tanto ver, já perdendo o rumo;

às vezes, anda pra lá e pra cá,   

 

 

com um velho baralho nas mãos,  

com ansiedade, confere as cartas,   

separa os naipes,  embaralha e corta rente,  

corta em cima, corta embaixo, 

e distribui pros  parceiros

que já se foram ou estão ausentes;  

e tudo se repete como uma doce paixão,  

que lhe aguça os sentidos,   

e, como uma luz, lhe alumia os trilhos 

e, por um instante, lhe devolve a vida;

 

 

sisudo, cheio de razões, 

grita truco, blefa a sorte num jogo de sedução, 

entre  vida e  morte, 

a última cartada já não depende de si, 

é esperar pra ver:  tudo ganhar ou tudo perder.

 

 

Pouco já lhe importa a jogada,  

se foi um blefe  ou de cartas marcadas: 

nada supera estar vivo:

“viver é muito bom!”

 

 

De longe, vejo meu pai deitado

no roto  sofá de sua memória;

calça as botas e coloca as esporas,

vagueia a esmo e a desoras,

nas invernadas de outros mundos;

em seu cavalo alazão:

vai subindo ladeiras,

vai  descendo grotões,

vai varando  pro fim do mundo,

e, aos poucos, vai vazando pelas fendas

de um tempo sem horas,

como se atravessasse as corretezas de um rio brabo 

e sete braças de profundo;  

ou como menino levado

que se esconde por trás de sombras

e brinca de pega e tudo assombra...

 

Agora ele está olhando ao leu

e contempla um céu cor de anil

e, como visse, em pleno dia,

estrelas baças,

vai contando os sonhos 

e inventando histórias

no vazio hostil de suas mãos esgarças

que, trêmulas, nada enlaçam:

cabaça quebrada no meio da estrada, 

já não guarda água,

não tem serventia,

não vale de nada! 

 

Nada supera estar vivo: “viver é muito bom!”

Cruza e descruza os dedos trêmulos

abrindo covas e colocando cruzes,

trança as linhas do tempo,

risca o vazio galopando antigas sendas 

e ele vai sem ir em seu cavalo trotão

que corre sem rédeas, 

nas palmas de suas mãos

e mais uma vez ele joga o laço e golpeia  o tempo

e peia o espaço com suas rezas

e seu rosário tosco chicoteia seus agouros 

e esporeia a sangue seus lamentose

ao tronco amarra os maus ventos que já cheiram a mofo,

a  leite azedo e a fortes unguentos, 

mas o tempo é touro bravio que causa medo e fortes arrepios, 

tem chifres pontudos e ancas largas de grande porte 

que risca o chão de  sul a norte  com patas afiadas

e investidas fortes 

e vai arando fundo e revirando o silêncio com seu olhar de fúria 

e de má sorte e vai deixando na poeira os rastros da vida, 

um grito surdo de dor e um odor de morte, 

que tudo enlaça:

cabaça quebrada no meio da estrada, 

já não guarda água, não tem serventia,

não vale de nada!.

 

Nada supera estar vivo: “viver é muito bom!”


De longe vejo meu pai

que vai remando na calada de suas rezas, 

se benze contra todo o mal,

se rodeia de santos, de anjos e a Deus

e à Virgem acende velas,

incendeia um feixe de novenas secas

e queima incenso pra esconjuros 

e prende na arca em um canto escuro

um anjo decaído e sete espíritos impuros.

 

De longe vejo meu pai

como um clarão na noite que se esvai, 

lentamente vai deixando as margens

como se fosse pra outro mundo 

e sua velha canoa já se faz ao largo

cortando as águas de um rio profundo 

90 anos batendo remos

contra as correntes de suas mágoas 

e  sozinho  navegando sonhos de pura dor

de amor antigo por sete vezes amado

e por sete vezes sete vezes desamado e incompreendido

sua linda ainda se veste de chita,

cheira a pó de arroz e usa anáguas

e um brinco de marfim; 

 

nunca o vi chorar

e de seus olhos jamais verteram lágrimas,

tudo foi escondido,

em segredo bem guardado, 

tudo formando mares e abismos profundos

abrindo fendas no fundo de seu olhar

de amar sempre cativo: 

cabaça quebrada no meio da estrada,

já não guarda água, não tem serventia, 

não vale de nada!

Nada supera estar vivo:

“viver é muito bom!”

 

E lá vai ele,

já não olha para trás, 

não sei se feliz ou magoado

ou partindo a contragosto:
ipê  amarelo plantado à minha porta, 

vai perdendo suas folhas para florescer em agosto,

vai virando canoa que vai rio abaixo,

à deriva de sua sorte,

cada vez mais rápido,

cada vez  mais distante,

e assim ele vai passando

como se remasse dentro de mim,

aos poucos ele vai abrindo um vazio

nas águas frias que banham as margens

de um rio largo e sem fim:

canoa parada à beira das águas,

ou está furada ou é fantasma de mágoas:

cabaça quebrada no meio da estrada,

já não guarda água, não tem serventia,

não vale de nada!

Nada supera estar vivo:

“viver é muito bom!”

  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

 

 

  



 

 

 

 

Comentários (3)>>Clique aqui para comentar
sandra regina
Meu coraçâo de joelhos agradece o privilegio de ter lido um "sentimento' tão lindo.
30/11/2009
Carlos Eduardo A. Alves
Querido Tio,

Este texto é simplesmente um verdadeiro tesouro... mas realmente "chegar aos 90, num é brinquedo não!"...

Grande Abraço!

Seu sobrinho Carlos Eduardo (Kadu Alves)
29/09/2009
Beatriz Alves
nem eu que convivo direto com nosso pai ; saberia falar com tanta verdade e emoçâo o que voce falou sobre ele. Me emocionei demais....
Beijos Bia.......
04/09/2009

Livros

Conheça e compre os livros do autor J.Alves

    Não foi possível realizar a conexão com o servidor do banco de dados